sábado, 30 de abril de 2011

Desabafo...

Se alguém me perguntar qual foi o pior dia eu respondo sem ter que refletir um só minuto: foi o dia que te vi pela primeira vez. Mesmo sabendo que tive um parto prematuro e mesmo ouvindo do seu pai e do meu pai a mesma frase: ela é muito pequena! Dar de cara com você absurdamente miúda foi com certeza a pior sensação que já tive. Cheguei a uti ansiosa para te ver, ouvi você chorar no parto e já estava certa de que Deus já tinha me dado você, nada mais importava. Mas quando te vi, a pergunta que fiz para Deus foi: Meu Deus, mas como? Mesmo hoje ao recordar, um ano depois, sinto ainda resquícios desta dor.

Esperava sair de lá com minha bebê, pequena. Mas não pensei em problemas, em aparelhos, em distância. Pensei apenas que você seria pequena e que eu cuidaria de você para você crescer. Mas meu amor, você era minúscula. Eu realmente nunca imaginei que um bebê tão pequeno poderia existir.

Ao cruzar a porta do hospital e me deparar com o mundo caí em mim. As lágrimas teriam que ficar para trás e a menina assustada, frustrada e egocêntrica também. Eu agora era uma mulher, e tinha que enfrentar essa situação nova. Limpei o rosto e fechei meus olhos, e fiz uma promessa mental: “prometo que algum dia vamos cruzar juntas essa mesma porta, e que até lá vou dar até minha última gota de esforço para que você sofra o menos possível”.

Não consegui. Não consegui não sofrer, não consegui evitar o seu sofrimento. Na uti não existem analgésicos. Tudo é feito a frio, a seco, a carne viva e a sua dor parece não ter a menor importância perto da gravidade da situação.Parecia que tinha sido enganada por Deus. Não!!! Absolutamente não eram aquela filha que eu tinha “encomendado”. Tinha encomendado bebê gordinha, lindíssima, filas de visitas, pratinhos de canja, amamentação olhando nos olhos, canções de ninar, desfiles de roupinhas...nada parecido com essa mini bonequinha magrela e olhuda, de fralda dentro dessa caixinhas aquecida e com um bando de fios ligado no corpo. Nem tocar em você eu podia!!!!

Foi a segunda grande dor que sentir. Não poder tocar em você, não poder pegar no colo meu nenemzinho, é simplesmente insuportável. Um vazio em meus braços incalculável, e você lá precisando tanto de um carinho. Em pouco tempo percebi que não existia nenhum 0800 com linha direta com o céu, nem “fale conosco” com email ou chat para eu poder reclamar e resolver a situação. Eu tinha que enfrentar e não sabia quais dos sentimentos emaranhados e confusos contidos dentro de mim seria mais útil para nós duas, mas com certeza a auto piedade seria o mais inútil.

A partir dali nasceu uma nova mulher...nasceu a mãe.

A UTI testa o tempo todo os seus limites. Você vive no limite entre a vida e a morte, numa roda viva de emoções das mais intensas, conhece de perto o pavor, a impotência, a frustração, a exaustão. E tem que estar sempre pronto a tomar decisões rápidas e conscientes.

É muito difícil. Você se sente solitário. Lembro que entrava no elevador e prendia a respiração até chegar à porta da uti, tentando não ser pega de surpresa por algo muito ruim. Com o coração disparado, ao me aproximar da sala queria sair correndo de tanto pânico... medo das notícias...medo da perda...medo da piora...medo do futuro...medo do presente...medo de ser fraca...medo de ser culpada...medo de não saber o que fazer. Entrava e dava um bom dia desconfiado, esperando pelas notícias, e os minutos de espera se tornavam horas.

Assim passaram-se semanas entre apnéias, convulsões, enterocolites, transfusões, insuficiência respiratória, sepsis, pneumonia ...Mas o pior para mim eram as veias. Coisa de mãe mesmo, ficar preocupada com a dor das mais de dez picadas que minha filha chegava a receber por dia. Eu morria aos poucos ao ver minha filha sendo toda picada, ficar toda roxinha, sem cabelinho na cabeça, gritando de dor e não poder impedir. Pensava na porcaria de mãe que eu era que não conseguia livrar minha filhinha de tanto sofrimento.

As seqüelas emocionais de uma separação prematura, forçada e tão triste de um bebê e sua mãe também são evidentes e serão necessários tempo e muito trabalho para vencê-las. Conheci algumas mães passam anos com filhos na uti. Não imagino como alguém possa agüentar essa tortura tanto tempo.

Não há amparo nem estrutura para acomodar algo tão delicado quanto uma ligação de um bebe com sua família. Na UTI não há sequer lugar par as mães descansarem e chegamos a passar horas em cadeiras desconfortáveis nas portas esperando pelo horário de entrar para amamentar ou visitar, ou acabar algum procedimento. As informações são desencontradas e há pouca preocupação com o lado humano, emocional, com o vínculo entre o bebê e a mãe. Em alguns casos, quando toco você sinto que você não gosta desse toque já esperando que ele venha acompanhado de alguma dor.


Tentei mesmo assim manter o sorriso no rosto. Saia de lá arrasada, entrava no carro, chorava, gritava, berrava, enxugava o rosto e chegava nos lugares como se nada tivesse acontecendo.Talvez assim tenha conseguido manter a sanidade do restante da família, mas ainda não sei se foi o melhor pra mim. Ainda hoje, tendo você nos braços, o choro ainda vem, o compulsivo, desesperado. Sempre que estou sozinha ele vem. Uma ferida que ainda não fechou, um choro que ainda não foi suficiente. As vezes você me olha com a mesma expressão daquela prematurinha e eu choro. Eu grito, um grito sem voz, um grito de desespero. Choro no carro, choro no banho, choro... Ainda sinto falta do abraço que não tive, do direito de sofrer que me foi negado porque tinha que ser forte para você e parecer forte para o resto do mundo.Se na nossa sociedade já existe o mito da mãe perfeita e boa, em cima da “mãe especial” então pesa o estigma de ser abençoada, santa, guardiã de anjos, etc.

Uma sociedade que impôs que eu tenho que ser aquela mãezinha resignada e sorridente que vive cantarolando pela casa, achando que o fato de ter um filho na uti é vestibular para o céu. Recuso-me a isto, mesmo sob pena de ser mal interpretada e taxada de algo considerado a pior das ofensas do mundo feminino: ser uma "mãe ruim". Precisei ouvir isso dentro de minha casa e se hoje me considero ser uma pessoa pior porque não tenho interesse em perdoar a isto. De quem eu amei e de quem não esteve ao meu lado para economizar sentimento. E nem a isso eu recriminei.

Não sou santa! Minhas atitudes em relação à minha filha nem sempre são tão nobres quanto às pessoas pensam, apesar de toda nossa simbiose. Sou tão santa quanto qualquer mãe que perde noites de sono medindo temperatura de um filho com amigdalite.

Não sou boa! As vezes sou má, como qualquer mãe ...e impaciente, exigente, intransigente, super protetora, ansiosa. Nem tão boa quanto a mãezinha da Chapeuzinho Vermelho e nem tão má quanto a madrasta da Cinderela, até porque ha muito percebi que a vida passa bem longe de ser um conto de fadas.

E não ando muito afim de aturar gente. Gente ignorante que vem na vida a passeio com a intenção de infernizar vida alheias. Não quero, não vou, e não preciso desse tipo de perda de tempo no meu caminho.

E hoje meu amor, quero me limpar, quero me preparar para um dia maravilhoso, da nossa comemoração, só nossa, porque somos só nós. Sou sua e você é minha, só minha, não divido com ninguém. Quem decidiu me dar você foi Aquele maior de todos, e ninguém menor dele pode querer tomar esse lugar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário