Se alguém me perguntar qual foi o pior dia
eu respondo sem ter que refletir um só minuto: foi o dia que te vi pela
primeira vez. Mesmo sabendo que tive um parto prematuro e mesmo ouvindo
do seu pai e do meu pai a mesma frase: ela é muito pequena! Dar de cara
com você absurdamente miúda foi com certeza a pior sensação que já
tive. Cheguei a uti ansiosa para te ver, ouvi você chorar no parto e já
estava certa de que Deus já tinha me dado você, nada mais importava.
Mas quando te vi, a pergunta que fiz para Deus foi: Meu Deus, mas como?
Mesmo hoje ao recordar, um ano depois, sinto ainda resquícios desta dor.
Esperava
sair de lá com minha bebê, pequena. Mas não pensei em problemas, em
aparelhos, em distância. Pensei apenas que você seria pequena e que eu
cuidaria de você para você crescer. Mas meu amor, você era minúscula.
Eu realmente nunca imaginei que um bebê tão pequeno poderia existir.
Ao
cruzar a porta do hospital e me deparar com o mundo caí em mim. As
lágrimas teriam que ficar para trás e a menina assustada, frustrada e
egocêntrica também. Eu agora era uma mulher, e tinha que enfrentar essa
situação nova. Limpei o rosto e fechei meus olhos, e fiz uma promessa
mental: “prometo que algum dia vamos cruzar juntas essa mesma porta, e
que até lá vou dar até minha última gota de esforço para que você sofra
o menos possível”.
Não consegui. Não consegui não sofrer, não
consegui evitar o seu sofrimento. Na uti não existem analgésicos. Tudo
é feito a frio, a seco, a carne viva e a sua dor parece não ter a menor
importância perto da gravidade da situação.Parecia que tinha sido
enganada por Deus. Não!!! Absolutamente não eram aquela filha que eu
tinha “encomendado”. Tinha encomendado bebê gordinha, lindíssima, filas
de visitas, pratinhos de canja, amamentação olhando nos olhos, canções
de ninar, desfiles de roupinhas...nada parecido com essa mini
bonequinha magrela e olhuda, de fralda dentro dessa caixinhas aquecida
e com um bando de fios ligado no corpo. Nem tocar em você eu podia!!!!
Foi
a segunda grande dor que sentir. Não poder tocar em você, não poder
pegar no colo meu nenemzinho, é simplesmente insuportável. Um vazio em
meus braços incalculável, e você lá precisando tanto de um carinho. Em
pouco tempo percebi que não existia nenhum 0800 com linha direta com o
céu, nem “fale conosco” com email ou chat para eu poder reclamar e
resolver a situação. Eu tinha que enfrentar e não sabia quais dos
sentimentos emaranhados e confusos contidos dentro de mim seria mais
útil para nós duas, mas com certeza a auto piedade seria o mais inútil.
A partir dali nasceu uma nova mulher...nasceu a mãe.
A
UTI testa o tempo todo os seus limites. Você vive no limite entre a
vida e a morte, numa roda viva de emoções das mais intensas, conhece de
perto o pavor, a impotência, a frustração, a exaustão. E tem que estar
sempre pronto a tomar decisões rápidas e conscientes.
É muito
difícil. Você se sente solitário. Lembro que entrava no elevador e
prendia a respiração até chegar à porta da uti, tentando não ser pega
de surpresa por algo muito ruim. Com o coração disparado, ao me
aproximar da sala queria sair correndo de tanto pânico... medo das
notícias...medo da perda...medo da piora...medo do futuro...medo do
presente...medo de ser fraca...medo de ser culpada...medo de não saber
o que fazer. Entrava e dava um bom dia desconfiado, esperando pelas
notícias, e os minutos de espera se tornavam horas.
Assim
passaram-se semanas entre apnéias, convulsões, enterocolites,
transfusões, insuficiência respiratória, sepsis, pneumonia ...Mas o
pior para mim eram as veias. Coisa de mãe mesmo, ficar preocupada com a
dor das mais de dez picadas que minha filha chegava a receber por dia.
Eu morria aos poucos ao ver minha filha sendo toda picada, ficar toda
roxinha, sem cabelinho na cabeça, gritando de dor e não poder impedir.
Pensava na porcaria de mãe que eu era que não conseguia livrar minha
filhinha de tanto sofrimento.
As seqüelas emocionais de uma
separação prematura, forçada e tão triste de um bebê e sua mãe também
são evidentes e serão necessários tempo e muito trabalho para
vencê-las. Conheci algumas mães passam anos com filhos na uti. Não
imagino como alguém possa agüentar essa tortura tanto tempo.
Não
há amparo nem estrutura para acomodar algo tão delicado quanto uma
ligação de um bebe com sua família. Na UTI não há sequer lugar par as
mães descansarem e chegamos a passar horas em cadeiras desconfortáveis
nas portas esperando pelo horário de entrar para amamentar ou visitar,
ou acabar algum procedimento. As informações são desencontradas e há
pouca preocupação com o lado humano, emocional, com o vínculo entre o
bebê e a mãe. Em alguns casos, quando toco você sinto que você não
gosta desse toque já esperando que ele venha acompanhado de alguma dor.
Tentei
mesmo assim manter o sorriso no rosto. Saia de lá arrasada, entrava no
carro, chorava, gritava, berrava, enxugava o rosto e chegava nos
lugares como se nada tivesse acontecendo.Talvez assim tenha conseguido
manter a sanidade do restante da família, mas ainda não sei se foi o
melhor pra mim. Ainda hoje, tendo você nos braços, o choro ainda vem, o
compulsivo, desesperado. Sempre que estou sozinha ele vem. Uma ferida
que ainda não fechou, um choro que ainda não foi suficiente. As vezes
você me olha com a mesma expressão daquela prematurinha e eu choro. Eu
grito, um grito sem voz, um grito de desespero. Choro no carro, choro
no banho, choro... Ainda sinto falta do abraço que não tive, do direito
de sofrer que me foi negado porque tinha que ser forte para você e
parecer forte para o resto do mundo.Se na nossa sociedade já existe o
mito da mãe perfeita e boa, em cima da “mãe especial” então pesa o
estigma de ser abençoada, santa, guardiã de anjos, etc.
Uma
sociedade que impôs que eu tenho que ser aquela mãezinha resignada e
sorridente que vive cantarolando pela casa, achando que o fato de ter
um filho na uti é vestibular para o céu. Recuso-me a isto, mesmo sob
pena de ser mal interpretada e taxada de algo considerado a pior das
ofensas do mundo feminino: ser uma "mãe ruim". Precisei ouvir isso
dentro de minha casa e se hoje me considero ser uma pessoa pior porque
não tenho interesse em perdoar a isto. De quem eu amei e de quem não
esteve ao meu lado para economizar sentimento. E nem a isso eu
recriminei.
Não sou santa!
Minhas atitudes em relação à minha filha nem sempre são tão nobres
quanto às pessoas pensam, apesar de toda nossa simbiose. Sou tão santa
quanto qualquer mãe que perde noites de sono medindo temperatura de um
filho com amigdalite.
Não sou boa! As vezes sou má, como
qualquer mãe ...e impaciente, exigente, intransigente, super protetora,
ansiosa. Nem tão boa quanto a mãezinha da Chapeuzinho Vermelho e nem
tão má quanto a madrasta da Cinderela, até porque ha muito percebi que
a vida passa bem longe de ser um conto de fadas.
E
não ando muito afim de aturar gente. Gente ignorante que vem na vida a
passeio com a intenção de infernizar vida alheias. Não quero, não vou,
e não preciso desse tipo de perda de tempo no meu caminho.
E
hoje meu amor, quero me limpar, quero me preparar para um dia
maravilhoso, da nossa comemoração, só nossa, porque somos só nós. Sou
sua e você é minha, só minha, não divido com ninguém. Quem decidiu me
dar você foi Aquele maior de todos, e ninguém menor dele pode querer
tomar esse lugar.
Juliana
Há 3 dias
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